Segundo Emilia Ferreiro, as mudanças tecnológicas e sociais trouxeram maiores exigências ao trabalho de alfabetização
EMÍLIA FERREIRO "As primeiras tentativas já não são vistas como rabiscos, mas uma espécie de escrita"
abaixo a entrevista concedida pela psicolinguista argentina Emilia
Ferreiro a NOVA ESCOLA em outubro de 2006. Emilia esteve em São Paulo
para participar da 1ª Semana Victor Civita de Educação.
Aqui ela
avalia as mudanças ocorridas nas práticas de leitura e escrita nas
últimas décadas, como consequência sobretudo das inovações tecnológicas
no campo da informática.
Como
se alteraram as concepções de alfabetização nestes quase 30 anos desde
que foi publicado seu livro Psicogênese da Língua Escrita?
EMILIA FERREIRO Mudou
a concepção social do alfabetizado. O que se requer de uma pessoa
alfabetizada hoje em dia é bem diferente do que em meados do século 20.
Não é mais suficiente saber assinar o nome e conseguir ler instruções
simples, como era na época da Segunda Guerra Mundial. Do ponto de vista
dos usos sociais da escrita no mundo contemporâneo, temos uma
complexidade cada vez maior. As circunstâncias de uso de leitura se
tornaram muito frequentes e variadas. O que não mudou é o tipo de
esforço cognitivo exigido por esse sistema de marcas que a sociedade
apresenta em espaços muito variados e a instituição escolar é obrigada a
transmitir. O problema da relação entre essas marcas escritas e a
língua oral continua sendo um mistério total nos primeiros momentos da
alfabetização.
E quanto ao ensino?
EMILIA
Uma mudança positiva é que já não se consideram as produções das
crianças de 4 ou 5 anos como tentativas erradas ou rabiscos, a exemplo
do que se dizia antigamente, mas sim como uma espécie de escrita.
Parece-me que agora há uma atitude positiva, como sempre houve em
relação aos primeiros desenhos. Outro avanço tem a ver com não se
assustar quando crianças pequenas querem escrever. Antes elas eram
desestimuladas porque se achava que não "estavam na idade". Também se
reconhece a importância de ler em voz alta para elas desde muito cedo.
Já se sabe que existe uma diferença grande entre ler e contar uma
história. Há um pequeno avanço - não tanto quanto deveria haver - na
prática de ler textos distintos e na valorização da biblioteca de sala
de aula. A simples atividade de ordenar os livros com as crianças,
usando critérios múltiplos, já as aproxima muito da leitura e enriquece a
escrita.
As coisas estão melhorando, então?
EMILIA Evidentemente
estou dando uma visão muito positiva. Sei que há um grande número de
professores tradicionais que não mudaram nada e continuam usando
cartilhas dos anos 1920 e 1930. A instituição escolar é muito
conservadora, muda com dificuldade. O importante é ter consciência de
que ela não está definida para sempre. O que ocorre fora a afeta e ela
não pode fechar os olhos. Este é um momento interessante pelo avanço
tecnológico, que põe a escola um pouco em crise. Existem coisas que
poderiam ter constituído avanço, porém foram muito mal compreendidas,
como acreditar que os níveis de conceitualização da leitura pela criança
mudam por si mesmas e que não é preciso ensinar, apenas deixar que ela
construa seu conhecimento sozinha.
As novas tecnologias trouxeram mudanças importantes?
EMILIA
Sim, se aceitarmos que o conceito de alfabetização não é fixo, mas uma
construção histórica que muda conforme se alteram as exigências sociais e
as tecnologias de produção de texto. Os novos meios entram não somente
na vida profissional, mas no cotidiano pessoal. Permitem ler e produzir
textos e também fazê-los circular de maneira absolutamente inédita. No
ano passado a Western Union, empresa que tinha o monopólio dos
telegramas nos Estados Unidos, anunciou em sua página da internet que
estava extinguindo esse serviço. Os telegramas tiveram muita importância
no século 20, anunciando contratações, demissões, nascimentos e mortes -
agora simplesmente não existem mais. Vemos então a desaparição de
certos gêneros e a aparição de outros. O texto de email, por exemplo,
não tem regras definidas. Não é como uma carta formal: podemos dizer se
ela está bem escrita ou não, porque há um paradigma claro para isso.
Quanto ao correio eletrônico, não. Algumas pessoas começam
tradicionalmente, escrevendo "querido fulano", dois pontos, e continuam
abaixo. Como se fosse uma carta formal. Muitos começam com "olá" ou
mesmo sem nenhuma introdução - vai-se diretamente para o texto da
mensagem. Tampouco se sabe como terminar. Alguns põem o nome; outros
não, porque já está escrito no cabeçalho. É uma espécie de escrita
selvagem. Não está normatizada e se prolifera. É difícil dizer se
acabará constituindo um estilo.
O que significa, então, estar alfabetizado hoje?
Emilia Ferreiro:
É poder transitar com eficiência e sem temor numa intrincada trama de
práticas sociais ligadas à escrita. Ou seja, trata-se de produzir textos
nos suportes que a cultura define como adequados para as diferentes
práticas, interpretar textos de variados graus de dificuldade em virtude
de propósitos igualmente variados, buscar e obter diversos tipos de
dados em papel ou tela e também, não se pode esquecer, apreciar a beleza
e a inteligência de um certo modo de composição, de um certo
ordenamento peculiar das palavras que encerra a beleza da obra
literária. Se algo parecido com isso é estar alfabetizado hoje em dia,
fica claro por que tem sido tão difícil. Não é uma tarefa para se
cumprir em um ano, mas ao longo da escolaridade. Quanto mais cedo
começar, melhor.
E possível dizer quando termina?
EMILIA Difícil...
Eu tenho duas classes de pós-graduação e continuo alfabetizando meus
alunos, porque é a primeira vez que enfrentam um certo tipo de texto que
apenas a literatura especializada produz e é difícil de ler. Além
disso, eles têm de escrever um objeto denominado tese, que também não é
fácil de escrever, primeiro porque é algo que se produz apenas uma ou
duas vezes na vida e nunca mais; segundo porque é uma combinação de
texto descritivo e argumentativo, com características próprias. Ler
fazendo uma pesquisa na internet é um modo particular de ler, tirando
informações e tomando decisões rapidamente. Os tempos de utilização da
internet podem ser prolongados, mas o mais comum é que se faça um uso
ágil. Não é o mesmo que entrar numa biblioteca. A quantidade de erros de
ortografia que se registram nos emails é enorme. Isso porque a
utilização é muito rápida e não costuma exigir correção. Escreve-se e
manda-se. Se for necessário dizer mais alguma coisa, manda-se outro.
No Brasil, os adolescentes criaram todo um código para se comunicar pela internet.
EMILIA Isso
acontece em toda parte; é um fenômeno muito generalizado. Uma vez mais,
não sabemos se é uma tendência importante ou se passará sem deixar
marcas. O certo é que eles estão fazendo com a escrita um jogo muito
divertido. É uma transgressão, mas para isso é preciso conhecer alguma
coisa da escrita. Porque afinal alguém tem que receber essa mensagem e
ler, ou seja, é preciso dar pistas para ser entendido. Um dado curioso é
que o uso generalizado da letra K nesse tipo de mensagem parece quase
obrigatório. Acontece também em espanhol, no qual o K é tão raro quanto
em português. E também é um recurso das crianças nas fases iniciais da
alfabetização. A letra K sempre tem o mesmo som, enquanto a letra C não é
confiável, tem muitos sons diferentes. Então as crianças ficam mais
seguras usando o K.
O e-mail incentiva a prática da escrita?
EMILIA
Acho que sim. Talvez não se leiam tantos livros atualmente, mas há mais
ocasiões de praticar a leitura e a escrita do que antes. Quando são
feitas pesquisas acerca do comportamento leitor de uma população, a
pergunta inevitável é: "Quantos livros leu no último ano?" Os resultados
na América Latina costumam ser lamentáveis, mas não se pode tirar
imediatamente a conclusão de que, no geral, se lê menos. Certamente a
leitura de um livro e do resultado de uma partida de futebol numa página
da web não são equivalentes em termos de esforço leitor; são práticas
muito diferentes.
Isso pode levar a um maior interesse pela leitura em geral, que acabe se refletindo na leitura de livros?
EMILIA
Talvez, mas seguramente não há uma relação de causa e efeito. Na medida
em que alguém pratica mais, torna-se mais competente e quem sabe possa
atrever-se a outros gêneros, suportes e obras frente aos quais antes
tinha uma atitude de rechaço ou temor. O que é importante distinguir é
que sob o verbo ler estamos agrupando muitos tipos de leitura e o mesmo
vale para o verbo escrever. Pelo lado de quem lê ou escreve, há
diversidade de propósitos, de circunstâncias, de tempo de organização. E
pelo lado daquilo que se lê e se escreve - ou seja, os gêneros - também
há diversidade e deve-se incluir agora os emails, os chats etc. Por
isso é tão ambíguo o discurso sobre a introdução das tecnologias no
âmbito escolar. O professor não sabe bem o que fazer com ele. Então
inventou-se a sala de informática, freqüentada apenas em horários
determinados. É uma maneira de não incluir o computador na atividade
cotidiana. A introdução dos computadores na escola é mais uma manobra
econômica do que uma necessidade pedagógica sentida como tal.
Muitas escolas têm computadores não conectados à internet. Costuma-se dizer que não servem para nada.
EMILIA Ao
contrário, são muito úteis. A escola sempre trabalhou mal a revisão de
texto e os alunos sempre odiaram fazê-la, porque num texto à mão as
correções deixam um aspecto horrível. E é preciso passar a limpo, voltar
a escrever tudo. Com um processador de texto, a revisão se torna um
jogo: experimentamos suprimir trechos ou mudá-los de lugar, com a
possibilidade de desfazer se não ficar bom. Depois de muitíssimas
intervenções, o que temos na tela é um texto limpo, pronto para ser
impresso. A revisão é fundamental para
que as crianças assumam a
responsabilidade pela correção e clareza do que escrevem. E com o
processador de texto elas podem trabalhar também com uma coisa que nunca
trabalharam, o formato: largura das linhas, mudanças tipográficas,
sublinhamento, manipulação do tamanho das letras etc.
Os computadores podem ser mais um estímulo para a alfabetização?
EMILIA Nos
lugares em que as crianças têm computadores em casa, o fato de haver na
escola não fascina muito, embora elas possam descobrir novos usos ao
trabalhar em grupos na sala de aula. Mas nas camadas mais desfavorecidas
da população os computadores possuem mais atrativos, porque todos sabem
que é um objeto muito valorizado socialmente e tem múltiplos usos
possíveis. O problema é que os computadores necessitam de suporte
técnico e, quando são instalados na escola, ninguém se lembra disso.
Portanto, muitas vezes as máquinas estão lá, só que inutilizadas.
Fonte: http://revistaescola.abril.com.br
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